Entrevista Martin Peter
O clínico geral Martin Peter de Burgdorf/Alemanha passou um mês de “férias de trabalho” (Março-Abril 2015) no Posto de Saúde do Tarrafal e fala desta experiência numa entrevista.
Entrevista de Annette Helle
Annette: Martin, acaba de passar umas férias de quatro semanas em trabalho no Tarrafal. Com que sentimentos retorna a casa?
Martin: Tenho sentimentos contraditórios. Por um lado, estou ansioso por voltar a casa e ver a minha família depois de tanto tempo. Por outro, sinto-me melancólico com essa perspetiva, porque conheci tantas pessoas a quem me afeiçoei. Fui acolhido calorosamente e sei que a minha presença foi apreciada. Será difícil dizer adeus às pessoas e a aldeia.
Annette: Como caracteriza a vida no Tarrafal?
Martin: As pessoas transmitem a impressão de ter todo o tempo do mundo. Nunca estão impacientes, por exemplo, não se importam de todo com as longas esperas à porta do Posto de Saúde, para eles isso é perfeitamente normal. Os pacientes chegam sem expectativas ou exigências,simplesmente ficavam felizes por eu os examinar ou medir a tensão arterial ou dar-lhes conselhos ou medicação. As pessoas são muito comunicativas entre elas, em cada esquina cumprimentam-se e trocam algumas palavras. O trabalho dos pescadores ou agricultores é muito exigente e requer um grande esforço físico - os barcos têm que ser arrastados sobre as pedras, o peixe tem de ser secado e tudo mais. No entanto, senti um certo grau de contentamento e serenidade. Encontrei aqui uma abordagem para a vida completamente diferente.
Annette: O que diz dos cuidados de saúde?
Martin: Eu distingo dois aspetos principais: a infraestrutura material e o pessoal. Fiquei agradavelmente surpreendido com ambos, tendo superado as minhas expectativas. Há disponíveis pensos e medicamentos suficientes, sobretudo para os que sofrem de doenças crónicas. Há mesas de exame, medidores de tensão e de glicose, etc. O pessoal surpreendeu-me ainda mais. O Ilídio, o enfermeiro-chefe é um homem competente e magnífico, não há quase nada que ele não possa fazer. Percebe de pequenas cirurgias, arranca dentes, coloca cateteres e tubos para administrar medicação via intravenosa, faz exames ginecológicos, prevenção e acompanhamento das mães, etc. É surpreendente tudo o que ele sabe fazer. O Jair, o assistente dele, é também muito competente e fez particularmente um bom trabalho no diagnóstico e administração de medicamentos.
Annette: Como e onde trabalhaste?
Martin: Primeiro, duas semanas no posto de saúde antigo, depois mais duas semanas no novo Posto de Saúde no outro lado da estrada. Este é muito bem equipado – 4 salas de tratamento, um dormitório masculino e outro feminino, e duches e sanitários novos. Também fiz uma série de consultas ao domicílio e subi as montanhas a pé com o Jair com uma seringa na mala que serviu para dar uma injeção a um idoso sem mobilidade.
Annette: Quais foram as doenças e queixas mais frequentes com que lidou?
Martin: Tive, muitas vezes, pacientes com dores de estômago e sintomas de gripe, hipertensão, e também muitos com doenças de pele e parasitárias.
Annette: Houve algum caso grave ou complicado?
Martin: Sim, dois. Encaminhei um jovem pescador para o hospital de Porto Novo com suspeita de inflamação do pâncreas, e uma menina de 10 anos teve que ser mandada para o hospital da ilha vizinha devido a uma dor abdominal forte para fazer mais exames.
Annette: Esteve no Tarrafal num momento de mudança. Como a experienciou?
Martin: Parece-me ter havido duas eras: antes da energia elétrica e depois da energia elétrica. No dia 30 de Março toda a aldeia estava entusiasmada; o primeiro-ministro cabo-verdiano e outros políticos de peso estiveram no local para, literalmente e metaforicamente, puxar a alavanca. A partir desse momento passou a haver luz 24 horas, o novo posto de saúde e a sede da associação dos pescadores foram inaugurados, e foi lançada a primeira pedra para melhorar a estrada. Casualmente testemunhei estes importantes acontecimentos.
Annette: Durante este tempo, destaca alguma experiência especial?
Martin: Os contatos pessoais com os pacientes e a forma calorosa com que fui recebido onde quer que fosse. Lembro-me de uma idosa que me abraçou calorosamente e me agradeceu com tanta humildade; emocionou-me muito…
Annette: Houve sensações ou ocorrências dececionantes?
Martin: Eu não diria dececionantes, é mais um caso de confirmação de expetativas. Por exemplo, o grogue é um problema, com que me deparei várias vezes - tanto nas consultas como ao percorrer a aldeia. Há uma série de alcoólicos graves, mas também muitos que simplesmente desistem de um dia para o outro.
Annette: A visita de trabalho ao Tarrafal trouxe algo de novo?
Martin: Trouxe, agora conheço a situação no local e posso avaliá-la melhor. Para melhorar os cuidados médicos de forma genuína e duradoura, não devemos impor uma solução vinda de fora que se revele aqui inútil e inadequada. Para melhorar o sistema, ele precisa crescer de uma forma adequada. O principal é manter os padrões necessários, incluindo o fornecimento de medicamentos e o trabalho educativo que penso ser também muito importante. No entanto, para poder ajudar, é vital aprender melhor a língua.
Annette: Na sua opinião, qualquer médico que queira trabalhar no Tarrafal consegue lidar com a situação? Para o que deve estar preparado?
Martin: Bom, nós estamos em África, é importante termos isso em mente e pela localização isolada, tudo se torna completamente diferente de qualquer outro lugar. Também se está muito próximo das pessoas, aliás entre elas, e por isso é necessário sermos uma ‘pessoa do povo’. Se falamos português ou outra língua próxima, isso é uma grande vantagem.
Annette: Voltarias a repetir esta experiência?
Martin: Claro, vou regressar!